O Conhecimento do homem e o Livre-arbítrio
1. Conhece-te a ti mesmo
[1539] Não é sem motivo que o provérbio antigo recomenda tanto ao homem o conhecimento de si mesmo. Porque, se achamos que é uma vergonha ignorar as coisas pertencentes à vida humana, o desconhecimento de nós mesmo é muito mais prejudicial,pois, dependendo do conselho alheio sobre todas as coisas, deixamo-nos enganar lamentavelmente, e acabamos até ficando totalmente cegos. Mas, assim como o preceito é muitíssimo útil, com muito maior razão é necessário cuidar diligentemente para não entendê-lo mal. Isso temos visto acontecer com alguns filósofos. Porque, quando eles admoestam o homem no sentido de conceder a si próprio, reduzem o seu objetivo a considerar sal dignidade e suas qualidades excelentes.Com isso, levam-no a nada mais contemplar, senão aquilo no que ele possa exaltar-se em vã confiança própria e inchar-sede orgulho.
2. Sem presunção
Ora, a verdade de Deus nos manda procurar outra coisa, quanto à nossa estima própria. Manda-nos buscar um conhecimento que nos afaste para longe de toda presunção quanto à nossa virtude pessoal e nos despoje de todo tipo de glória, para nos levar à humildade.Essa é a regra que devemos seguir, se desejamos conseguir o objetivo do bem sentir dobem fazer. Sei quanto é agradável ao homem que o levem a reconhecer seus talentos e assuas qualidades elogiáveis, em vez de ser levado a entender e a enxergar a sua pobreza, asua infâmia, a sua torpeza e a sua loucura. Porque não há no espírito humano maior apetite que o de que lhe passem mel na boca dizendo-lhe doces palavras lisonjas.
3. Fome de lisonjas, e seus estragos
Todavia, quando os ser humanos vê que mostram apreço por suas qualidade, inclina-se a acreditar em tudo o que lhe dizem a seu favor. Portanto, não é de admirar que a maior parte do mundo erre desse modo nesse aspecto. Uma vez que os seres humanos têm um amor desordenado e cego por si mesmos, mostram-se dispostos a acreditar que não existem eles nada que mereça desprezo. Assim, sem necessidade de outro advogado, todos acolhem a vã opinião de que o ser humano é auto-suficiente para ter uma vida digna e feliz.Se existem alguns que se dispõem a um sentimento mais modesto, concedendo alguma coisa a Deus para que não pareça que atribuem tudo a si mesmo, não obstante repartem tudo entre Deus e eles. Mas fazem isso de tal maneira que a maior parte da virtude, da sabedoria e da justiça fica com eles. Sendo, pois, assim, que o ser humano é tão inclinado agabar-se, não há nada que o possa agradar mais do que quando o afagam com vãs lisonjas.É por isso que aquele que mais exalta a excelência da natureza humana é sempre o mais bem recebido. Todavia, essa doutrina – a que ensina o ser humano a aprovar a si mesmo –não faz mais que enganá-lo. E isso, seja quem for aquele em quem se ponha fé, só causará ruína. Pois, que proveito poderemos ter em conceber uma vã aliança para deliberar,ordenar, tentar e empreender o que nos parece bom, e, entretanto, fraquejar, tanto por falta de uma inteligência saudável quanto por falta de capacidade para pretendida realização? Fraquejar, ou mostrar fraqueza, digo eu, desde o começo, e, contudo, insistir nesse intento com coração obstinado até sermos totalmente postos em confusão.Ora, não pode ver outro fruto aos que se acham capazes de fazer qualquer coisa por sua própria virtude e poder. Se alguém der ouvidos aos mestres que falam dessa maneira, os quais nos distraem querendo que tenhamos consideração por nossa justiça e virtude, esse, que lhesdá ouvidos, não terá proveito nenhum no conhecimento de si próprio, mas estará cego,vítima de perniciosa ignorância.
Autor: João Calvino
Fonte: As Institutas
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